A rentabilização dos recursos instalados nos Hospitais portugueses (quer sejam do Sector Público Administrativo quer sejam Entidades Públicas Empresariais) tem gerado ou agravado atitudes e comportamentos considerados aceitáveis e recomendados no plano da produção, mas com efeitos perversos na qualidade dos cuidados, na adequação temporal e até no custo dos mesmos.
Refiro-me às consultas externas hospitalares em geral e no caso concreto da área da Medicina Física e Reabilitação.
Como é do conhecimento público, os actos técnicos de Medicina Física e Reabilitação são da responsabilidade de um Médico Fisiatra e, como tal, são assumidos pelos sistemas de saúde desde que prescritos por um Médico Fisiatra. Este facto tem como pressuposto o princípio da responsabilidade médica diferenciada a todos os actos de intervenção praticados em doentes com fins terapêuticos.
A reflexão que hoje quero partilhar prende-se apenas com as consultas externas efectuadas em meio hospitalar, com as suas consequências no tratamento dos doentes e nas finanças públicas.
Podemos utilizar um exemplo hipotético (baseado em situações concretas vividas na prática clínica), de um doente que é hospitalizado num dos hospitais centrais para tratamento de uma situação aguda, que vem a necessitar de cuidados de MFR no regresso à área da residência.
O mesmo doente, para ter acesso àqueles cuidados, vai usufruir de uma consulta de MFR ainda no Hospital Central, sendo de seguida enviada informação ao respectivo Médico Assistente ou ao Hospital de referência da área da residência. Neste momento acontece o registo de uma primeira consulta que apenas tem consequências organizacionais (envio do doente para a área onde poderá ser tratado). Saltando a consulta do Médico Assistente, vamos então poder encontrar o doente a aceder a uma consulta de MFR do Hospital de referência da área da sua residência, ocorrendo a efectivação de mais uma primeira consulta. Alguns doentes terão a sorte de encontrar vaga (ou de residir na proximidade do Hospital referido) podendo iniciar tratamento no mesmo, terminando aqui o seu percurso, tendo sido efectuadas 2 primeiras consultas para iniciar um tratamento de MFR. Esta não é no entanto a situação mais frequente; não tendo vaga para ser tratado ou vivendo mais perto de um outro hospital com área de ambulatório de MFR, o mesmo doente vai ser encaminhado para mais uma consulta (primeira) no referido hospital que, se também não tiver disponibilidade de tratamento imediato, o coloca em lista de espera ou então “despeja” para as entidades convencionadas. Até aqui houve 3 consultas e várias prescrições, nenhuma concretizada.
As consequências deste procedimento são evidentes para os doentes, mas são mais obscuras para o sistema. Constata-se aqui uma multiplicação do número de consultas, com consequências financeiras para o Hospital (positivas) e para o pagador (multiplicação de actos a pagar para o mesmo fim), sem consequências para o estado de saúde do doente. Mais grave ainda é a conivência dos estabelecimentos hospitalares que utilizam este sistema multiplicativo de consultas, sem se preocuparem com o resultado prático das mesmas no estado de saúde dos doentes.
Aqui junta-se outra perversidade do sistema: os tratamentos de MFR em regime ambulatório não são objecto de negociação em sede de Contrato Programa dos hospitais, pelo que não têm financiamento próprio. Por esta razão, entram nas obrigações institucionais sem contrapartida financeira, razão pela qual nenhum hospital se preocupa em assegurar as consequências da consulta: tratamento ambulatório de MFR em tempo útil.
Em consequência deste sistema, os doentes vêem diferido o início da sua terapêutica de MFR, várias estruturas facturam primeiras consultas (137,08 euros) sem a consequente intervenção terapêutica e poucas instituições se preocupam em proporcionar o tratamento atempado de MFR.
Na ausência de resposta hospitalar o doente vai entrar na via sacra da procura de uma unidade privada (eventualmente convencionada) que dê resposta à sua situação clínica. Mas esta última situação merece ser apreciada de modo individual, pela sua complexidade e perversidade.
Neste contexto, a rentabilização dos recursos hospitalares baseia-se no volume, independentemente da adequação, da prossecução do objectivo terapêutico e mesmo do resultado final. A tentativa de liderança pelo preço, independentemente de sabermos que o produto final da produção hospitalar é qualidade de saúde, é evidente. A liderança pela qualidade continua a ser um desiderato de alguns serviços (nichos de mercado) que rapidamente vão ficar fora de moda e que serão esmagados pela máquina dos “gestores de topo” que confundem serviços de saúde com linhas de produção. Confunde-se frequentemente diferenciação com qualidade e quantidade com rentabilização dos recursos instalados.
A euforia dos “gestores de topo” dos mercados financeiros (que conduziu à actual crise financeira) vive-se, à sua dimensão, nos hospitais públicos portugueses: só contam os números, quaisquer que sejam as suas consequências para os utentes. Mas quando a crise (de valores) chegar ao sector da saúde muito mal terá sido feito, muitos doentes terão sofrido em vão e muitos euros terão sido desperdiçados.
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