É hoje frequente falar e ouvir falar da sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde e das ameaças e responsabilidades duns e doutros.
Mas este discurso reporta-se apenas à sustentabilidade financeira, tal como as preocupações que podemos ter em relação à Justiça e ao Ensino, considerando que o SNS também é sustentado pelo Orçamento Geral do Estado. Assim, se o país produzir riqueza teremos dinheiro para as estruturas que asseguram a continuidade das funções do Estado; se o país viver de empréstimos ficam ameaçados os serviços básicos de apoio à comunidade.
Mas há outras ameaças ao SNS, que a bem dizer já não são ameaças mas realidades. Estou a falar da organização da rede pública hospitalar de serviços de saúde. A qualidade dos serviços de saúde não resulta da soma das fracções que a constituem, mas sim do enriquecimento que é consequência da potenciação na interacção das partes intervenientes num contexto de complementaridade, realização e satisfação profissional do profissionais envolvidos.
Esta qualidade e complementaridade foi adquirida ao longo dos últimos trinta anos graças ao esforço e empenhamento de muitos profissionais, vinculados a princípios de intervenção comunitária e social desenvolvidos a partir de 1974.
A implementação dos Hospitais EPE trazia consigo a esperança de flexibilizar o regime de gestão então existente, baseado numa Administração Pública burocrática, lenta e pesada; trazia a esperança de promover uma utilização mais rentável dos recursos instalados, adoptando filosofias de gestão mais modernas e já utilizadas no sector privado.
No entanto o paradigma do funcionamento (e do financiamento) dos hospitais deixou de se basear na qualidade dos serviços (de facto, não na teoria) adequados às necessidades das populações, e passou a basear-se exclusivamente nos números da produção contractualizada, gerando efeitos secundários perversos para as finanças públicas e para os utentes:
- A partir do momento em que a avaliação dos serviços teve como base a estatística da sua produção (não ponderada por auditorias de qualidade regulares), todos os actos (mesmo irrelevantes e sem consequências no processo terapêutico) passaram a ser contabilizados, aumentando o volume de facturação da instituição;
- A indução da produção começou a ser efectuada pelas próprias estruturas hospitalares, mais interessadas na quantidade produzida do que na sua real adequação às necessidades dos utentes; em consequência, aumentou o consumo de consultas, de meios complementares de diagnóstico, de terapêuticas sem fim (nem proveito real), de transportes medicalizados deixando a enganadora sensação de rentabilidade.
- A produção dos actos cirúrgicos cresceu, independentemente do timing adequado para a sua realização; para além do interesse objectivo das instituições hospitalares neste aumento de produção, este sistema permitiu alimentar um sector privado que se veio sustentando na incapacidade hospitalar de dar resposta às necessidades que ele próprio criou. Os mesmo agentes, trabalhando dos dois lados da barreira, encarregaram-se de ir alimentando este círculo vicioso.
Este funcionamento desregrado, não controlado, maliciosamente utilizado nalguns casos, ao serviço da produção por objectivos desvirtuou o funcionamento dos Hospitais Públicos integrados no SNS. Os doentes são estudados e avaliados nos hospitais para em seguida serem entregues, qual carne limpa, para tratamento e cirurgias no sector privado, mantendo o garante hospitalar para as consequências nefastas tardias. Estes procedimentos conduzem progressivamente à desvirtuação dos Hospitais Públicos, que passam a ter produções com preços unitários elevados (quando comparadas com as entidades privadas que só fazem o acto técnico financeiramente interessante, pois o resto foi assumido a montante).
Esta lógica maquiavélica põe em causa a estrutura organizacional das unidades elementares da produção hospitalar: os serviços médico-cirúrgicos. Esta sim é a verdadeira ameaça ao Sistema Nacional de Saúde, vem de dentro e foi gerada pelo próprio Ministério.
Para este desvirtuar dos Serviços contribuiu também (nalguns hospitais EPE) a criação de Departamentos, sem afinidades técnicas, sem complementaridades, acrescentando apenas uma estrutura de comando intermédia entre as Direcções de Serviço e os Conselhos de Administração. Estas estruturas intermédias de chefia permitiram criar chefias inoperantes e mais dispendiosas (mais um Director e mais um Administrador) que a organização que as precedeu.
Foi um engordar da organização hospitalar em pseudo-controlos de custos e de produção para promover amigos e imobilizar as estruturas elementares da organização hospitalar tradicional: os serviços médicos (no sentido lato).
Assim se produzem mais actos, se produz menos saúde, se agravam os custos da saúde e se desmantelam os serviços clínicos hospitalares, em nome da gestão promovida pelos gurus que afundaram a economia mundial.
Sem comentários:
Enviar um comentário