Vamos “cortar nas gorduras” é o excerto de uma frase que ficou famosa nos últimos tempos. É também mais um dos exemplos de como toda a gente utiliza as referências à medicina, à doença e à saúde para explicar factos da vida social, política ou económica, como se assim eles se tornassem mais claros.
Nenhum mal viria ao mundo se a par da ignorância que as pessoas demonstram nesses momentos sobre a saúde, não fosse comparável à ignorância que depois constatamos que existe em relação aos problemas reais, que foram comparados com situações de saúde e de doença.
Se tudo se resolvesse como os problemas de saúde, tal facto faria dos médicos os melhores políticos, os melhores economistas ….
Como médico não posso deixar de fluir o meu raciocínio clínico dando continuidade à metáfora do Sr. Primeiro-ministro e enviar algumas prescrições médicas que poderão ter algum rebate na vida comunitária.
Assumimos pois que, cortar nas gorduras era o primeiro passo para tratar a obesidade consumista e endividada do nosso país. Claro está que o procedimento mais rápido e eficaz para retirar alguns quilos de gordura é cirúrgico. Isto quer dizer que é um procedimento agressivo, doloroso (se não houvesse anestesia), mas com resultados imediatos indiscutíveis. Até aqui há uma certa sintonia entre o doente, as suas necessidades e a prescrição médica e esta foi a parte fácil do processo.
A parte difícil vem a seguir: depois de emagrecer é preciso manter, e é aqui que os problemas começam.
Para conservar o status adquirido não basta fazer uma cirurgia de emagrecimento é preciso mudar os hábitos de vida, e é preciso mudar os hábitos alimentares. É preciso repensar a vida em função duma nova situação adquirida e daquilo que são os projectos de vida futura. Os políticos chamam a isto reformar a sociedade.
Ao novo magro não basta seguir a dieta dos chás da vizinha, comer só abacaxi como lhe disse a caixa do super-mercado, fazer oito refeições por dia como comentava outro novo magro na sala de espera do hospital, ou tomar aqueles comprimidos que referiu aquele vizinho que partilha o autocarro. Como vemos há sempre uma quantidade de gente a mandar palpites, baseada na ignorância da sua fé e da sua experiência pessoal (restrita). Mais grave do que mandar palpites é constatar que há quem os siga como se um receita médica fosse. Nós médicos sabemos que a alimentação humana é muito complexa pois baseia-se na avaliação das necessidades energéticas e tróficas, que são variáveis de pessoa para pessoa tendo por base a fisiologia de cada um, mas necessitando de ajustamentos à vida de cada um. Aqui já constatamos que, para rentabilizar o investimento da cirurgia, é necessário ser aconselhado por que sabe e evitar seguir os conselhos dos abençoados ignorantes de boas intenções.
Mas não chega mudar os hábitos alimentares, porque ninguém os muda de modo radical e duradouro. É preciso encontrar outra aplicação para as energias que inevitavelmente vão ser ingeridas em excesso. Para isto é necessário substituir as gorduras por massa muscular, aquela massa muscular que irá ajudar a vencer os novos desafios duma vida mais saudável, evitando a acumulação de gorduras que lentamente se virá a instalar, se não houver esta mudança consolidada de estilo de vida. Também neste aspecto as pessoas vão ter à sua disposição uma grande quantidade de pareceres tão inúteis quando ignorantes: desde ir andar a pé todos os dias como faz o colega de trabalho, ir à piscina como faz o empregado do café da esquina, ou mesmo ir para um ginásio, como faz o amigo do filho que até tem um “cabedal” de fazer inveja. Os profissionais de saúde e da actividade física sabem bem que isto não é tão linear e que o preço destes conselhos de algibeira se paga mais tarde e com juros elevados, sem hipótese de recuperar o dinheiro nem o tempo perdido.
Apercebemo-nos então de que, na tentativa de ajudar o nosso ex-gordo, muita gente ignorante e bem-intencionada tenta participar na mudança de estilo de vida, de alimentação, de actividade física, de modo a permitir consolidar os benefícios obtidos com a intervenção realizada.
Ora bem, quando a medicina era praticada para resolver estes problemas às pessoas, a cirurgia de emagrecimento acontecia depois de termos adquirido a convicção de que os candidatos tinham consciência do percurso que havia a fazer e de que estavam de facto envolvidos num processo de mudança. Hoje praticamos medicina para produzir estatística, para resolver listas de espera e satisfazer os críticos dos jornais e das televisões. Por isso muita gente que se submeteu à cirurgia da obesidade, volta a ser obesa.
É neste momento que eu desafio os políticos a darem continuidade ao seu raciocínio, baseados nesta leve reflexão sobre as gorduras e sobre o cortar respectivo. Partindo do meu raciocínio clínico vou tentar extrapolar para o momento político, e aqui espero que me perdoem a ignorância política, como eu lhes perdoo a ignorância médica.
Estamos então no período de convalescença desta cirurgia de emagrecimento, que acabou por ser mais complicada do que parecia. O nosso obeso tinha co-morbilidades escondidas e foi uma anestesia difícil e complicada. Não foi possível resolver a questão recorrendo apenas à lipoaspiração pelo que se mostrou necessário reduzir também as calorias ingeridas recorrendo a uma banda gástrica. Isto é, ao mesmo tempo que o governo procurava onde poupar dinheiro apercebeu-se de que aquela poupança era suficiente para resolver o problema da “gordura” nacional. As dívidas escondidas e as surpresas tornaram necessárias intervenções de fundo que alteram o metabolismo de cada um. Cortaram nos salários, aumentaram os impostos e destas novas cirurgias ficaram cicatrizes que vão levar tempo a deixar de doer ou de incomodar.
Mas agora que a cirurgia está feita, que o doente começa a sair da cama e a recuperar consciência das dificuldades que já passaram, urge pensar no futuro, numa vida melhor, e numa esperança de vida acrescida. É então tempo de pensarmos no regime alimentar e na recuperação do músculo anteriormente referidas.
Quer dizer que é tempo de pensarmos seriamente na reforma das instituições, que convém fazer de modo avisado, com convicção, baseadas no conhecimento e não nas opiniões daqueles ignorantes de boa vontade que costumam dar conselhos de saúde sobre tudo: os omnisapientes da vida e sobretudo da política.
Se não mudarmos o estilo de vida do ex-gordo, ele volta a ser gordo. Se não reformarmos (de facto) o funcionamento das instituições públicas agora, elas voltarão a ser ineficazes e consumidoras indevidas de recursos públicos num futuro próximo.
Não basta fundir os hospitais, fechar um tribunal e centralizar os recursos noutro, fechar uma escola ou fazer desaparecer algumas áreas escolares (desnecessárias!).
É preciso reorganizar o que fica, de modo a permitir que este novo corpo seja suficientemente musculado para encaixar as dificuldades da sua nova anatomia. É preciso fazer funcionar as instituições com base em pressupostos de necessidades reais da população (quais são as necessidades calóricas para o novo regime de vida), com critérios de produtividade real (não baseada em números fabricados pelos próprios). Para esta nova fase é pois importante continuar a contar com profissionais qualificados para aconselharam o nosso ex-obeso, quer dizer que é preciso atribuir a gestão destas novas instituições a quem sabe da matéria, evitando os curiosos ignorantes bem-intencionados.
E é aqui que começamos a perder o nosso doente. Damos ouvidos a qualquer um, seguimos uma receita tradicional portuguesa dos “boys for the jobs” e aparece a dar conselhos de dietética alguém que não sabe comer, a dar conselhos de exercício físico alguém que nunca o praticou nem aprendeu a fazer praticar, a fazer suporte psicológico alguém que nunca aprendeu a arte, mas te
m muito jeito ( e até mandam uns palpites que parecem atinados), e deles (dos ignorantes) é o reino dos céus.
É em consequência desta incapacidade nacional de fazer reformas, e de rentabilizar as cirurgias de emagrecimento realizadas, que nós vamos regularmente pedir dinheiro às entidades internacionais, fragilizando a nossa sociedade e o metabolismo do nosso ex-gordo que parece um acordeon e nunca mais encontra uma vida estável e saudável.